sábado, 23 de novembro de 2013

Sobre as origens da cultura

Para compreender o muito complexo conceito de cultura devemos olhar para o mesmo como aquilo que de facto é - uma propriedade emergente de uma biologia complexa. Enquanto que as ciências humanas, ainda profundamente mergulhadas nas linhas teóricas dos séculos XIX e XX, compreendem a cultura como um fenómeno quase exclusivamente antrópico, a ciência moderna avança para um entendimento mais lato e racional das várias manifestações culturais, ancorando esse mesmo entendimento na ideia de que a cultura surge como comportamento social em várias espécies de seres vivos intelectualmente desenvolvidos. Esta percepção nova e não antropocêntrica reconhece a origem da cultura não no Homem mas noutros grupos de animais.



A cultura dá-se, decididamente, quando se dá a transmissão sistemática de conceitos entre os vários indivíduos de um grupo. Esta transmissão pode ser horizontal, entre animais coetâneos entre si, ou vertical, entre seres de gerações diferentes.



A transmissão cultural é observável em várias comunidades animais. Os mamíferos, que de todos os animais mais se esforçam para perpetuar as suas descendências (através de um processo de crescimento mais longo), são a classe animal onde a cultura melhor se estruturou. Dentro desta mesma classe podemos compreender vários tipos de animais sociais e culturais. Porém, de todos, destacam-se principalmente três famílias mamalianas: os elefantídeos, os cetáceos, e os primatas.

Os elefantes, seres altamente inteligentes e comprovadamente auto-conscientes, transmitem entre si noções espaciais concretas. Os vários grupos matriarcais preservam uma consciência colectiva da sua estrutura social e da estrutura do seu território, do qual partilham a memória das localizações de vários recursos.
Nos cetáceos a cultura assume ainda maior projecção. Diferentes grupos sociais de orcas (Orcinus orca) mantêm diferentes dietas e, logo, diferentes comportamentos de caça. Estas dietas emergiram de comportamentos individuais que se foram fossilizando no tecido social de cada grupo e que se tornaram elementos distintivos no universo populacional da espécie. Comportamentos adquiridos em situação de cativeiro por um roaz (Tursiops aduncus) libertado na costa australiana foram depois transmitidos a outros indivíduos do seu grupo local e este mesmo comportamento tornou-se numa assinatura cultural deste grupo.
Os primatas levam a cultura na Terra ao seu actual ápice. Uma ideia gerada por um primata é rapidamente transmitida à circunscrição cultural na qual ele se insere e isso é facilmente observável nos macacos capuchinhos (Cebus capucinus), da América Central,  que passam sistematicamente o conhecimento do uso de ferramentas e de plantas medicinais de geração em geração. E este desenvolvimento da cultura torna-se ainda mais complexo nas espécies geneticamente mais próximas do Homo sapiens, com a inclusão de hierarquias sociais rígidas e de conceitos cada vez mais intrincados no repertório cultural transmissível.

A civilização humana deve ser então entendida como algo que surgiu numa linha biológica evolutiva que se desenvolve numa complicada trama há centenas de milhões de anos. A cultura emerge da evolução natural da vida complexa: animais inteligentes e sociais geram cultura. E acredito que é nesta perspectiva mais inclusiva e cientificamente coerente que devemos tratar este conceito importantíssimo para a compreensão da existência humana.