domingo, 24 de novembro de 2013

Camuflagem

Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha mas sim sob aquelas com que se defrontam directamente, legadas e transmitidas pelo passado. [1]

           Podemos verificar isso mesmo, ao longo de todos os séculos.
         Façamos deste meu texto tão pouco interessante, uma máquina do tempo e recuemos até aos séculos XVI, XVII e XVIII, durante os quais predominou, na Europa, o Absolutismo. O culminar de um processo já iniciado na Idade Média (passado), que significou o fracasso da Nobreza e o sucesso da monarquia; a afirmação do soberano, que se dizia "Homem especial" porque o seu poder lhe era transmitido directamente por Deus (e não por ser filho de realeza, que era filha de realeza, que era filha de realeza e por ai em diante - o tal legado que nos é transmitido pelo passado - não, vossa alteza era escolhida por Deus e a doutrina sustentava que o seu direito de governar derivava da vontade de Deus, e não de qualquer autoridade temporal ou qualquer testamento) e do poder que este tinha sobre os seus súbditos. A Igreja e o Estado caminhavam lado a lado, "de mãos dadas": o político usava o sagrado e o sagrado usava o político. Se era proibido na ordem religiosa, também o era na civil. Daí a expressão "A união Trono e Altar".
          Reflictamos.

    Trono. Altar. (des)União. Poder. Deus. Soberano. Súbditos. Vontade. Proibido. Absoluto.  Sistema. Ideologia.

          Peguemos naquela última palavra. Ideologia.

            Ideologia (in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa) s. f. i·de·o·lo·gi·a (ideo- + -logia) substantivo feminino; ciência da formação das ideias. Tratado sobre as faculdades intelectuais. Conjunto de ideias, convicções e princípios filosóficos, sociais, políticos que caracterizam o pensamento de um indivíduo, grupo, movimento, época, sociedade (ex.: ideologia política). [2]

            Segundo Karl Marx, a Ideologia é a consciência que cada um tem da realidade. É portanto uma ilusão, uma consciência sempre falsa, já que depende das condições materiais e variáveis da vida; o material é que determina a consciência. Qualquer relação com a realidade é de falsidade, de distorção. Eis o conceito de Ideologia de Marx, que assume a relatividade da percepção que temos em relação ao que nos rodeia e aparece como concepção idealista na qual a realidade é invertida e as ideias aparecem como motor da vida real. "(...) No marxismo posterior a Marx, sobretudo na obra de Lenine, ganha um outro sentido, bastante diferente: ideologia é qualquer concepção da realidade social ou política, vinculada aos interesses de certas classes sociais particulares."[3]

"(...) ideologia é o conjunto das concepções, ideias, representações, teorias, que se orientam para a estabilização, ou legitimação, ou reprodução da ordem estabelecida [Já utopias,] (...) são aquelas ideias, representações e teorias que aspiram uma outra realidade, uma realidade ainda inexistente." [3]
           
          Portanto, a Ideologia age mascarando a realidade, originando a sua inversão ou a camuflagem, para os ideais ou interesses da classe dominante.
        Assim, funcionou o sistema Absolutista. Servindo os interesses da classe dominante (Rei/Nobreza) e ocultando a realidade. A perspectiva e o modo de ver as coisas, não era encarado pela sociedade como falso. A falsa consciência está sempre mesmo "à frente dos nossos olhos", mas escondida. Uma das características daquilo que é ideológico é ser natural aos nossos olhos, não o sendo realmente. Ou seja, a ideologia disfarça-se de natural, mas é tudo menos natural.
          Nós estamos constantemente a confundir o que está numa camada natural (que é necessário) com o que está na camada cultural (que é arbitrário, discutível). Para as pessoas dos séculos XVI, XVII e XVIII, era "natural" aquele poder divino do rei, a perseguição da igreja, o Deus-todo-poderoso, o castigo divino, a dedicação (ou "obsessão") religiosa, etc. Quando na verdade tudo isso fazia parte da camada cultural, sendo assim arbitrário e não necessário. Fazia parte das regras culturais, era "normal".
      Regressemos ao presente, nesta nossa máquina do tempo. Aqui e agora a questão é: Estaremos confundidos? O ser humano não muda. Mudaram-se os tempos mas os pensamentos mantiveram-se os mesmos. Será que vivemos numa situação assim tão diferente daquela que se viveu à séculos atrás? Pensemos.
           
          E se quisermos, faremos uma visita ao futuro. Mas isso ficará para mais tarde. Numa próxima viagem.
          Aqui e agora, reflictamos.

"Até agora, os homens formaram sempre ideias falsas sobre si mesmos, sobre aquilo que são ou deveriam ser. Organizaram as suas relações mútuas em função das representações de Deus, do homem normal, etc., que aceitavam. Estes produtos do seu cérebro acabaram por os dominar; apesar de criadores, inclinaram-se perante as suas próprias criações. Libertemo-los portanto das quimeras, das ideias, dos dogmas, dos seres imaginários cujo jugo os faz degenerar. Revoltemo-nos contra o império dessas ideias. Ensinemos os homens a substituir essas ilusões por pensamentos que correspondam à essência do homem, afirma um; a ter perante elas uma atitude crítica, afirma outro; a tirá-las da cabeça, diz um terceiro e a realidade existente desaparecerá." [4]


Referências:
[1] MARX, Karl, O 18 Brumário de Louis Bonaparte, São Paulo: Escriba, 1987, p.15
[2]"ideologia", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/DLPO/ideologia
[3] LOWY, Michael, Ideologia e ciência social, São Paulo: Cortez, 1985, p. 12 e 13

[4] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich, A Ideologia Alemã, 3ª edição, São Paulo: Wmf Martins Fontes, 1974, prefácio