quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Saber viver



Todos nós somos, em primeiro lugar, seres da natureza, vivemos dela e ela vive de nós; contudo, existe algo que nos distingue dos outros seres: para além de sermos animais, ainda nos diferenciamos destes ao sermos racionais.
E o que é isto de ser racional? Ser racional é ter dentro de nós aquilo que nos permite  separar-nos de nós mesmos , ou seja, que nos permite o reconhecimento da coexistência  de dois mundos que dentro de nós se relacionam de uma certa maneira: falamos do mundo das ideias e do mundo das coisas.
Podemos comparar a nossa vida enquanto percurso nestes dois mundos com o procedimento que seguimos para fazer um colar: existe uma linha e nessa linha enfiamos uma conta e outra e outra...
Cada conta representa o exacto momento da acção: as que ficam para trás constituem o passado; aquelas que são colocadas no preciso segundo que corre constituem o presente. Este, no entanto, já não o é,  pois a conta já foi colocada, o que nos faz questionar: então quando é que é o presente?
Sempre que pensamos estar a viver o presente, já este pensamento é passado; o presente será, assim, o último instante do passado e cada possibilidade do futuro que nesse instante se abre. É daqui que surge o mundo das ideias, envolvendo o nosso pensamento, a nossa intuição, a nossa escolha da conta que iremos colocar no colar.
Recapitulando: para agir concretamente, temos de pensar subjectivamente, pois nenhuma conta do colar é colocada sozinha ou ao acaso; é necessário escolhê-la , movê-la, dispô-la.
 E como é que a escolhemos?  Ninguém o sabe. O mundo concreto parte do abstracto, o visível parte do invisível, o decifrável parte do mistério, ninguém nem nós mesmos conseguimos ver a “imagem” do “momento” da escolha de cada conta. Melhor dizendo: não é possível ver a ideia, mas conseguimos ver a coisa; de facto, conseguimos ver todas as contas do colar que ficaram para trás.
Voltando à escolha das contas: qual escolher afinal? Na verdade, todos nós construímos este colar um tanto à luz de velas. Eis o que quero dizer com esta alegoria (desenvolvimento da metáfora do colar): a luz da vela representa um pouco aquilo que conhecemos ou podemos reconhecer que é real para nós, envolvendo a nossa cultura, a nossa época, o nosso quotidiano, a família, as memórias, os gostos, etc., ou seja, muitas vezes, ao pegarmos numa conta, damos azo a que intervenham factores que poderão de uma certa maneira influenciar a nossa escolha. Existe, contudo, sempre um plano escuro nesta decisão (digo escuro no sentido de invisível), pois não só não sabemos se a conta foi bem escolhida (se a acção contribui para a nossa felicidade ou não) mas também, como muitas vezes acontece, apagamos a luz da vela, procurando, como geralmente dizemos, “agir sem pensar” ou “atirarmo-nos  de cabeça”, pois não sabemos o que fazer .
E o que é isto de ser feliz ou de saber o que fazer? Todos nós queremos criar um belo colar; contudo, nem sempre escolhemos a cor ou a forma certa da conta, isto é, ocorre aquilo a que chamamos erros, falhas, dor, infelicidade, etc..
Mas novamente me questiono: o  que é para nós  certo e errado?
Se reflectirmos  bem, quantos de  nós não pensámos ter colocado a conta considerada errada e, no fim, nos apercebemos de que, afinal, foi a certa?
Na verdade, existem inúmeras quebras durante o fabrico deste nosso colar da vida: umas vezes enganamo-nos na cor, outras vezes na forma, outras vezes – em casos mais extremos – quebramos o fio. Irremediável? Nunca. Como disse no início, nós pertencemos à natureza e ela pertence-nos a nós. E o que é a natureza se não quebras – mortes e renascimentos? Para o fruto brotar do calor do verão, é necessário florescer do sol da primavera a flor que o gera. Esta provém da semente que necessitou da chuva e da espera do inverno para a dar a nascer. E assim sempre, constituindo o colar da natureza.
 O mesmo se passa com o nosso colar humano: podemos colocar outras contas ao lado da que considerámos “mal escolhida”, de tal modo que se torne “bem escolhida” na relação com as outras. E, no caso de quebra do fio, podemos sempre dar-lhe um nó  e continuar a colocar novas  contas.  O importante é nunca desistir do nosso colar.
“Depois da tempestade vem sempre a bonança”– não é o que dizemos habitualmente? Não é exactamente  o que acontece com a natureza? Não somos nós mais do que seres da natureza? Porque não aconteceria, então, connosco o mesmo que com ela acontece?
A pior quebra ou momento de ruptura já nós a tivemos logo desde o início: do mundo quente materno partimos para um mundo frio desconhecido; abrimos os olhos pela primeira vez, respirámos pela primeira vez , soltámos o primeiro grito pela primeira vez.
E agora temos medo de colocar uma conta no nosso colar, depois de termos colocado tantas outras quando tudo era desconhecido, misterioso, confuso.
Do nada aprendemos a ouvir e a ver (a fazer uso dos sentidos), depois a gatinhar, a andar, a falar; depois a ler e escrever, a perceber, a estudar, a compreender, a crescer: aprendemos a viver, a colocar as contas no colar. E, para tudo isto, quantas vezes caímos, quantas vezes chorámos, quantas vezes gritámos e estivemos para desistir… Contudo ainda aqui estamos: mais fortes, mais duros e mais experientes.
E quanto mais percebermos que o que julgámos errado estava, afinal, certo, o que tomámos como engano, no fim de contas, não o foi, e à dor e sofrimento sobrevieram alegrias e deleites, mais fácil será a vida e a escolha das suas contas: se uma cair, já não perdemos tanto tempo com lamentações e agimos mais rapidamente: ou recuperando-a ou escolhendo outra.
Todos estes colares da nossa vida são diferentes, mas belos. É a diversidade que leva à expressividade e a vida é bela e expressiva na sua diversidade. É a interrogação e a dúvida que levam ao conhecimento. É a incerteza que leva à certeza de que nada é certo...  E então? Não deixa de ser uma aventura em que a actividade nos lança.
O que nos levaria agir se não fosse a existência do incerto?
As contas são incertas, mas o colar é certo. Continuemos, por isso, a viver certamente nesta incerteza, para que, no fim, nos apercebamos de que tudo o que pensámos estar errado estava, afinal, realmente certo.
maria teresa basilio 7677