Todos nós
somos, em primeiro lugar, seres da natureza, vivemos dela e ela vive de nós;
contudo, existe algo que nos distingue dos outros seres: para além de sermos
animais, ainda nos diferenciamos destes ao sermos racionais.
E o que é
isto de ser racional? Ser racional é ter dentro de nós aquilo que nos
permite separar-nos de nós mesmos , ou
seja, que nos permite o reconhecimento da coexistência de dois mundos que dentro de nós se relacionam
de uma certa maneira: falamos do mundo das ideias e do mundo das coisas.
Podemos
comparar a nossa vida enquanto percurso nestes dois mundos com o procedimento
que seguimos para fazer um colar: existe uma linha e nessa linha enfiamos uma
conta e outra e outra...
Cada conta
representa o exacto momento da acção: as que ficam para trás constituem o
passado; aquelas que são colocadas no preciso segundo que corre constituem o
presente. Este, no entanto, já não o é, pois a conta já foi colocada, o que nos faz
questionar: então quando é que é o presente?
Sempre que pensamos
estar a viver o presente, já este pensamento é passado; o presente será, assim,
o último instante do passado e cada possibilidade do futuro que nesse instante
se abre. É daqui que surge o mundo das ideias, envolvendo o nosso pensamento, a
nossa intuição, a nossa escolha da conta que iremos colocar no colar.
Recapitulando:
para agir concretamente, temos de pensar subjectivamente, pois nenhuma conta do
colar é colocada sozinha ou ao acaso; é necessário escolhê-la , movê-la, dispô-la.
E como é que a escolhemos? Ninguém o sabe. O mundo concreto parte do
abstracto, o visível parte do invisível, o decifrável parte do mistério,
ninguém nem nós mesmos conseguimos ver a “imagem” do “momento” da escolha de
cada conta. Melhor dizendo: não é possível ver a ideia, mas conseguimos ver a
coisa; de facto, conseguimos ver todas as contas do colar que ficaram para trás.
Voltando à
escolha das contas: qual escolher afinal? Na verdade, todos nós construímos
este colar um tanto à luz de velas. Eis o que quero dizer com esta alegoria
(desenvolvimento da metáfora do colar): a luz da vela representa um pouco aquilo
que conhecemos ou podemos reconhecer que é real para nós, envolvendo a nossa
cultura, a nossa época, o nosso quotidiano, a família, as memórias, os gostos,
etc., ou seja, muitas vezes, ao pegarmos numa conta, damos azo a que
intervenham factores que poderão de uma certa maneira influenciar a nossa escolha.
Existe, contudo, sempre um plano escuro nesta decisão (digo escuro no sentido
de invisível), pois não só não sabemos se a conta foi bem escolhida (se a acção
contribui para a nossa felicidade ou não) mas também, como muitas vezes
acontece, apagamos a luz da vela, procurando, como geralmente dizemos, “agir
sem pensar” ou “atirarmo-nos de cabeça”,
pois não sabemos o que fazer .
E o que é
isto de ser feliz ou de saber o que fazer? Todos nós queremos criar um belo
colar; contudo, nem sempre escolhemos a cor ou a forma certa da conta, isto é, ocorre
aquilo a que chamamos erros, falhas, dor, infelicidade, etc..
Mas
novamente me questiono: o que é para nós
certo e errado?
Se reflectirmos
bem, quantos de nós não pensámos ter colocado a conta considerada
errada e, no fim, nos apercebemos de que, afinal, foi a certa?
Na verdade,
existem inúmeras quebras durante o fabrico deste nosso colar da vida: umas
vezes enganamo-nos na cor, outras vezes na forma, outras vezes – em casos mais
extremos – quebramos o fio. Irremediável? Nunca. Como disse no início, nós
pertencemos à natureza e ela pertence-nos a nós. E o que é a natureza se não
quebras – mortes e renascimentos? Para o fruto brotar do calor do verão, é
necessário florescer do sol da primavera a flor que o gera. Esta provém da
semente que necessitou da chuva e da espera do inverno para a dar a nascer. E
assim sempre, constituindo o colar da natureza.
O mesmo se passa com o nosso colar humano: podemos
colocar outras contas ao lado da que considerámos “mal escolhida”, de tal modo
que se torne “bem escolhida” na relação com as outras. E, no caso de quebra do
fio, podemos sempre dar-lhe um nó e
continuar a colocar novas contas. O importante é nunca desistir do nosso colar.
“Depois da
tempestade vem sempre a bonança”– não é o que dizemos habitualmente? Não é exactamente
o que acontece com a natureza? Não somos
nós mais do que seres da natureza? Porque não aconteceria, então, connosco o
mesmo que com ela acontece?
A pior
quebra ou momento de ruptura já nós a tivemos logo desde o início: do mundo quente
materno partimos para um mundo frio desconhecido; abrimos os olhos pela
primeira vez, respirámos pela primeira vez , soltámos o primeiro grito pela
primeira vez.
E agora
temos medo de colocar uma conta no nosso colar, depois de termos colocado
tantas outras quando tudo era desconhecido, misterioso, confuso.
Do nada
aprendemos a ouvir e a ver (a fazer uso dos sentidos), depois a gatinhar, a
andar, a falar; depois a ler e escrever, a perceber, a estudar, a compreender,
a crescer: aprendemos a viver, a colocar as contas no colar. E, para tudo isto,
quantas vezes caímos, quantas vezes chorámos, quantas vezes gritámos e
estivemos para desistir… Contudo ainda aqui estamos: mais fortes, mais duros e
mais experientes.
E quanto
mais percebermos que o que julgámos errado estava, afinal, certo, o que tomámos
como engano, no fim de contas, não o foi, e à dor e sofrimento sobrevieram
alegrias e deleites, mais fácil será a vida e a escolha das suas contas: se uma
cair, já não perdemos tanto tempo com lamentações e agimos mais rapidamente: ou
recuperando-a ou escolhendo outra.
Todos estes
colares da nossa vida são diferentes, mas belos. É a diversidade que leva à expressividade
e a vida é bela e expressiva na sua diversidade. É a interrogação e a dúvida
que levam ao conhecimento. É a incerteza que leva à certeza de que nada é certo...
E então? Não deixa de ser uma aventura em
que a actividade nos lança.
O que nos
levaria agir se não fosse a existência do incerto?
As contas
são incertas, mas o colar é certo. Continuemos, por isso, a viver certamente
nesta incerteza, para que, no fim, nos apercebamos de que tudo o que pensámos
estar errado estava, afinal, realmente certo.
maria teresa basilio 7677
maria teresa basilio 7677