segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Ter

A alternativa ter versus ser não é apelativa para o senso comum. Ter, ao que parece, é uma função normal da vida: para viver necessitamos de ter coisas. Mais do que isso, temos de ter coisas para podermos usufruí-las. Numa cultura em que o objectivo supremo é o ter – e ter cada vez mais – e na qual é usual dizer-se de alguém «ele vale um milhão» como poderá existir uma alternativa entre ter e ser? Pelo contrário, pareceria normal que a própria essência de ser fosse o ter: quem não tem nada não é ninguém.1

Numa altura do ano em que as lojas se enchem de enfeites e luzes coloridas e todos correm até ao último minuto para comprar presentes, é pertinente questionar a importância de ter.

Toda a nossa existência gira à volta do ter coisas, de possuir, e, muitas vezes, mostrar que as temos. Esta roda-viva de comprar - deitar fora - comprar é característica da sociedade consumista em que vivemos; se antigamente, no século dezanove, aquilo que se tinha era tratado, cuidado e utilizado até ao limite da sua utilidade, hoje em dia já nada se preserva, deita-se fora e compra-se um novo, de preferência o último modelo. Claro que se prende também com o facto de as ofertas no mercado serem cada vez mais, novos produtos serem lançados todos os dias e serem feitos com o objectivo de durarem pouco. Mas isto não explica o porquê de se estar sempre a adquirir coisas.

O ter parte da natureza da propriedade privada. A posse é única, exclui os outros, se eu adquiri é meu e tenho direito sobre ele. Esta característica contribui para um afastamento cada vez maior, fechando o indivíduo consigo mesmo e os seus objectos. O ter cada vez mais e o querer ter sempre mais faz com que os objectos adquiram uma importância que não têm. As posses começam a definir aquilo que uma pessoa é, e desta forma os objectos apoderam-se da vida.

Agora que se aproxima o final do ano, todos fazem as suas resoluções para o que aí vem. E se 2013 não lhes deu o que queriam, esperam que 2014 seja generoso. Tocam as doze badaladas e enquanto comem as passas pensam “em 2014 quero ter a carta de condução, ah, e já agora um carro”, “a ver se compro aquele telemóvel que o meu já está mesmo velhinho”. Damos por nós a dizer “quero ter isto e aquilo”, e onde fica o ser no meio disso tudo? Quando é que vamos deixar de pensar naquilo que “temos” de ter para pensarmos naquilo que somos?

O ter está preso ao mundo material, às coisas físicas; o ser parte das experiências humanas e é, portanto, ‘indescritível’1. Tal como Marx defendia, o objectivo deve definir-se como: ser muito e não ter muito.

Embora seja difícil ser neste mundo consumista em que as posses definem uma pessoa, que as resoluções para o ano que aí vem não passem pelo ter, mas sim que sigam o objectivo de Marx, pois ser é único e original (não há dois seres humanos iguais). 

Fromm, Erich (1999). Ter ou Ser?. Lisboa: Editorial Presença