Desde tenra idade
que meninas se sentam perante grandes espelhos e se adornam com pérolas,
batons, roupas e acessórios dos modelos femininos com quem convivem. Desde essa
mesma idade aprendem que menina não é o mesmo que menino, e sentem já o peso
das diferenças de género, que em nada são leves. Associam-se já a objetos
claramente destinados a um género, como as bonecas de cinturas de dimensão irreal ou
alimentos fictícios, os quais servem para brincar “aos pais e às mães” e
perante qual brincadeira não têm qualquer dúvida do seu papel.
Desde esta idade
tão jovem que podemos experienciar que o circuito económico, com o intuito de
aumentar as vendas, acentua através da segmentação as diferenças de género. Género
e cultura revelam-se nada mais que pontos de alavanca e enviesamento
ideológico, sendo o género o factor que mais claramente divide um público.
Quando estes dois
pontos se misturam, assistimos a um verdadeiro teatro – a moda, a publicidade,
os cultos... Os diferentes papéis destinados aos dois géneros tornam-se cada
vez mais intensos. Ao mesmo tempo, as penalizações para os que não se inserem
na ordem hegemónica dominante tornam-se cada vez mais opressoras, e a exclusão
parece ser a principal resposta. Ora, dado que é algo tão marcado na sociedade,
não admira que crianças desde os 3 anos os sintam, como ideias definidoras do
seu ser. Face às meninas que aparecem de unhas pintadas, a sociedade responde
com nada mais que “é óbvio que a menina pinta as unhas”. No óbvio o ideológico disfarça-se daquilo que
parece natural.
Disfarçam-se
igualmente de natural as profissões que surgem para cada género. É neste acordo
social que damos conta da clara diferença de géneros que a sociedade enfrenta,
espelhado nos diferentes trabalhos destinados a cada género. Salvo raras excepções,
as empregas da limpeza são mulheres, e não encontramos também muitos homens em
salões de estética. Por outro lado, é também difícil ver mulheres em andaimes
de obras ou em certos cargos de poder. Isto tudo imposto pela mera “obviedade”.
Althusser não poderia ser mais explícito
quando afirma que “É de facto uma peculiaridade da ideologia ela impor (sem
parecer fazê-lo uma vez que são “obviedades”) a obviedade como obviedade, que
nós não podemos deixar de reconhecer e perante a qual temos a reação natural e
inevitável de gritar (alto ou na “muda voz da consciência”): “Isso é óbvio”
Isso é claro” Isso é verdade!”
A ficção que a
menina que se adorna encena em nada difere do teatro que a sociedade orgulhosamente
exibe. A menina em questão não nasce mulher, mas torna-se mulher.
Referências
De
Bouvoir, Simone, (1967). O segundo sexo:
a experiência vivida. São Paulo: Difusão Europeia do Livro. ISBN
Louis
Althusser (1976) “Idéologie et appareils idéologiques d’État (Notes pour une
recherche)” in POSITIONS (1964-1975). Paris: Les Éditions Sociales, pp. 67-125.
Tradução de João Paulo Queiroz. Acedido em 2013-12-28. Disponível em URL:
<http://pwp.netcabo.pt/qrz/althusser.pdf>