segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

O peso do género

Desde tenra idade que meninas se sentam perante grandes espelhos e se adornam com pérolas, batons, roupas e acessórios dos modelos femininos com quem convivem. Desde essa mesma idade aprendem que menina não é o mesmo que menino, e sentem já o peso das diferenças de género, que em nada são leves. Associam-se já a objetos claramente destinados a um género, como as bonecas de cinturas de dimensão irreal ou alimentos fictícios, os quais servem para brincar “aos pais e às mães” e perante qual brincadeira não têm qualquer dúvida do seu papel.
Desde esta idade tão jovem que podemos experienciar que o circuito económico, com o intuito de aumentar as vendas, acentua através da segmentação as diferenças de género. Género e cultura revelam-se nada mais que pontos de alavanca e enviesamento ideológico, sendo o género o factor que mais claramente divide um público.
Quando estes dois pontos se misturam, assistimos a um verdadeiro teatro – a moda, a publicidade, os cultos... Os diferentes papéis destinados aos dois géneros tornam-se cada vez mais intensos. Ao mesmo tempo, as penalizações para os que não se inserem na ordem hegemónica dominante tornam-se cada vez mais opressoras, e a exclusão parece ser a principal resposta. Ora, dado que é algo tão marcado na sociedade, não admira que crianças desde os 3 anos os sintam, como ideias definidoras do seu ser. Face às meninas que aparecem de unhas pintadas, a sociedade responde com nada mais que “é óbvio que a menina pinta as unhas”.  No óbvio o ideológico disfarça-se daquilo que parece natural.
Disfarçam-se igualmente de natural as profissões que surgem para cada género. É neste acordo social que damos conta da clara diferença de géneros que a sociedade enfrenta, espelhado nos diferentes trabalhos destinados a cada género. Salvo raras excepções, as empregas da limpeza são mulheres, e não encontramos também muitos homens em salões de estética. Por outro lado, é também difícil ver mulheres em andaimes de obras ou em certos cargos de poder. Isto tudo imposto pela mera “obviedade”. Althusser  não poderia ser mais explícito quando afirma que “É de facto uma peculiaridade da ideologia ela impor (sem parecer fazê-lo uma vez que são “obviedades”) a obviedade como obviedade, que nós não podemos deixar de reconhecer e perante a qual temos a reação natural e inevitável de gritar (alto ou na “muda voz da consciência”): “Isso é óbvio” Isso é claro” Isso é verdade!”
A ficção que a menina que se adorna encena em nada difere do teatro que a sociedade orgulhosamente exibe. A menina em questão não nasce mulher, mas torna-se mulher.

Referências

De Bouvoir, Simone, (1967). O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão Europeia do Livro. ISBN


Louis Althusser (1976) “Idéologie et appareils idéologiques d’État (Notes pour une recherche)” in POSITIONS (1964-1975). Paris: Les Éditions Sociales, pp. 67-125. Tradução de João Paulo Queiroz. Acedido em 2013-12-28. Disponível em URL: <http://pwp.netcabo.pt/qrz/althusser.pdf>