domingo, 29 de dezembro de 2013

A cultura dos automóveis e o Citroën DS

"Creio que o automóvel é hoje o equivalente bastante exacto das grandes catedrais góticas: quero dizer, uma criação que faz época, concebida com paixão por artistas desconhecidos, consumida na sua imagem, senão no seu uso, por um povo inteiro, que através dela se apropria de um objecto perfeitamente mágico."

     O automóvel a que Roland Barthes se refere nesta frase, retirada do ensaio "O Novo Citroën" do seu livro Mitologias, publicado em 1957, é o Citroën DS. O autor utiliza este modelo para explicar a magia do automóvel moderno: um objecto cuja superfície é lisa e suave, e cujas peças se juntam de maneira "fluida", demonstração da sua perfeição. Compara-o com as naves espaciais da ficção científica, feitas de metal contínuo, ou seja, sem articulação, e com o Nautilus, submarino do livro "Vinte Mil Léguas Submarinas", de Júlio Verne. Descreve-o ainda como "uma transformação da vida em matéria", referindo também a ambiguidade do seu nome: DS pronuncia-se "Déesse", que significa Deusa.
     Esta descrição que Barthes faz do "automóvel moderno" de 1957 é aplicável também hoje em dia: tal como as catedrais góticas referidas pelo autor e presentes em algumas cidades, os carros são algo que marca a cidade e a sua paisagem urbana. São objectos que têm uma função, mas que grande parte da população aprecia de uma perspectiva que não a da sua funcionalidade, mas sim a do design, ou com base nos "extras" que existem em cada modelo de automóvel1, embora parte da população aprecie também as características técnicas do automóvel.
     No entanto, por vezes, a parte técnica do automóvel é apreciada não pelo seu valor e pela utilidade que tem, mas por conferir um certo estatuto ao proprietário do automóvel. Também os anúncios publicitários dos automóveis demonstram esse aspecto: comprar certo carro significa ter estatuto, estilo e poder e embora muitos de nós tenhamos consciência que o publicitado nos anúncios é um exagero da realidade, continuamos a julgar "os carros dos outros", e a tirar conclusões sobre o tipo de condutor de certo carro, e a sua personalidade. Por exemplo, se passarmos por um Porsche ou um Ferrari muitas vezes comentamos que o proprietário "está cheio de dinheiro", ou ao passarmos por um Mini ou um Carocha cor-de-rosa pensamos que o seu proprietário é quase de certeza uma mulher, assim como provavelmente pensamos que é um homem se avistarmos um Land Rover ou Jeep preto.
     Segundo Roland Barthes, com o Citroën DS o conforto e o gosto em conduzir substituíram a exaltação da velocidade, algo que foi possível devido à atenção aos detalhes de manufactura pela parte da Citroën. Também esta atenção aos detalhes e à maneira como o automóvel é construído que o autor refere perdura nos nossos dias. Embora o design dos automóveis seja actualmente muito mais "homogéneo", as marcas de automóveis orgulham-se de fabricar veículos de qualidade, algo que passa por essa atenção aos pormenores, quer construtivos quer estéticos. Hoje em dia, cada vez mais os automóveis são "máquinas de conforto", construídas para que a experiência de condução do seu utilizador seja o mais agradável possível.

"… ei-lo [o automóvel] mais doméstico, mais de acordo com essa sublimação da utensilagem que se encontra nas nossas artes caseiras contemporâneas: o quadro de condução assemelha-se mais à banca de uma cozinha moderna do que à central de uma fábrica: os postigos estreitos de chapa cor de mate, ondulada, as minúsculas alavancas com bolas brancas, as placas muito simples, a própria discrição da niquelagem, tudo isto significa uma espécie de controle exercido sobre o movimento, concebido, a partir daqui, mais como conforto do que como resultado. Passa-se, de modo evidente, de uma alquimia da velocidade a uma gula da condução."



1 - Abordado noutro post, citando "A Indústria Cultural", de Theodor Adorno e Max Horkheimer