segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Domingos de Chuva

“A que Arte esteve reservado um sonho, que... fosse, em simultâneo, poético e real? Considerado de tal ponto de vista, o cinema representaria um meio de expressão absolutamente incomparável e, na sua atmosfera, só poderiam mover-se pessoas de pensamento muito nobre, em momentos de total perfeição e mistério do trajecto da sua vida.”
Séverin-Mars

Muitos julgam ter sido perdida muita reflexão vã em torno da questão da fotografia enquanto arte e, consequentemente, da questão do cinema enquanto arte. A realidade é que esta problemática  pode ser posta noutros termos para uma melhor compreensão: Será que a arte contemporânea se tornou fotográfica? Depois da invenção da fotografia, que deu lugar ao cinema, o carácter global da Arte parece ter mudado e, como tal, não é possível julgar a Arte nos mesmos termos que eram válidos até à altura.
Walter Benjamin, em “A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica”,  expõe um interessante paralelismo entre o Teatro e o Cinema, enunciando em que pontos é que estas duas manifestações artísticas divergem. Considerando o teatro como uma manifestação artística mais fidedigna, real e pura na sua essência temporal e espacial, Benjamin diferencia o Actor de Teatro do Actor de Cinema. Uma das conclusões principais da sua reflexão é que o Cinema não pode ser considerado uma arte que assente no valor de Culto uma vez que o Actor, ao contrario do Actor de Teatro, actua com a sua totalidade de pessoa mas sem a sua Aura (o Aqui e o Agora  que o Teatro proporciona).
Apesar da perda da Aura do Actor, e da personagem que representa, não considero que tal postulado retire ao Cinema o seu estatuto de expressão artística. Acredito que desde que o cinema se capitalizou, os interesses comerciais se sobrepuseram aos interesses culturais e o “culto da estrela” se instalou que ele se traiu a si mesmo, perdendo muito do seu valor cultural e artístico.
Porque é que penso assim? Há uns tempos para cá que decidi que deveria alargar a minha cultura cinematográfica. Foi com este pensamento que peguei numa das muitas listas dos melhores filmes de sempre e comecei a fazer uma selecção. Citizen Kane, Psycho e A Desaparecida foram os primeiros que quis ver. Comecei pelo Citizen Kane, aparentemente considerado o segundo melhor filme de sempre depois do Vertigo. Depois de os ver comecei a associá-los a outros já vistos como O Terceiro Homem, o Cinema Paraíso etc. O que todos estes filmes têm em comum é uma preocupação estética muito forte e sensível e uma dimensão humana ausente na grande maioria dos filmes da actualidade.
A capacidade dos actores (e realizadores) de transmitir emoções e sensações, como a nostalgia tão presente em Cinema Paraíso, foi substituída pelos efeitos especiais e excesso de grafismo em cenas violentas. A preocupação com os cenários e jogos de luz nas filmagens, incríveis na sua materialização em O Terceiro Homem, foi substituída por maquetas pré-feitas. Os filmes lentos em que podíamos apreciar a naturalidade do movimento e o desenvolvimento do raciocínio e da emoção humana, como A Janela Indiscreta, foram substituídos por filmes com cenas rápidas e cheias de acção que garantem a concentração do espectador. Também toda a grande dimensão do cinema é perdida com a “mania” de ver filmes em pequenos ecrãs como o dos computadores.

Creio que o Cinema tem vindo a perder o seu estatuto enquanto Arte desde que se tornou uma industria e se afastou do seu primeiro propósito, uma exploração Artística. A realidade é que esta Industria produz uma quantidade absurda de filmes, sem qualquer tipo de qualidade no enredo ou preocupação estética e intelectual só para entreter a população nos domingos de chuva.