Há uns tempos combinei com umas amigas
encontrarmo-nos para “por a conversa em dia”, porém surgiu um imprevisto e
atrasei-me. Como estava frio, elas resolveram estacionar o carro perto do local
e esperar lá dentro. Passados poucos minutos, outro carro estacionou no lugar à
frente e elas repararam que era um casal que não se coibia de trocar caricias,
mesmo sendo dia e estando estacionados num local relativamente movimentado de
Lisboa. Enquanto eu não chegava, as minhas amigas continuaram a assistir ao
espectáculo. Curiosas e apreensivas, agradadas e escandalizadas, voluntária e
involuntariamente, continuaram a assistir à cena.
Obviamente, quando cheguei ao local, este episódio
foi motivo de conversa. Contaram-me que o rapaz era um mulherengo e que a
rapariga lhe satisfazia todas as vontades, que se calhar nem namoravam, que ela
podia ser a amante...
Mas como é que elas podiam ter esta informação? Elas
não conheciam as pessoas em questão até terem estacionado no lugar à frente.
Porque é que o rapaz tinha o poder e não a rapariga?
Após estudar o artigo O Prazer Visual e o Cinema Narrativo (Mulvey, 1957), tentei
associar os conceitos que lá surgem com este episódio.
O artigo
pretende associar o fascínio pelo cinema e os padrões pré-existentes na
sociedade, entre eles, a forma padronizada de representar e satisfazer o desejo de
prazer, assente num papel activo masculino e num papel passivo feminino.
Desse ponto de vista, cinema molda a maneira como se obtém
prazer através do olhar, a partir de um ponto de vista masculino e
falocentrista, enquanto que a mulher tem um lugar central apenas como imagem,
unicamente exibida, que funciona exposta ao olhar masculino e daí submissa ao
homem. A desigualdade entre sexos manifesta-se claramente. Desta maneira, o
olhar criado pelo cinema narrativo é um olhar com género masculino por defeito
e a mulher nunca produz sentido, não significa nada em si mesma, é apenas um
objecto de prazer e um suporte à acção (Mulvey, 1975).
Será que foi
devido a esta influência que as minhas amigas tiveram tanta facilidade em
categorizar o rapaz como poderoso e a rapariga como objecto sexual? Sendo
raparigas, não deviam de considerar a outra rapariga também poderosa e o rapaz
como objecto sexual?
Ainda no artigo, há dois conceitos com grande relevância: a
escopofilia (prazer em olhar a outra pessoa enquanto objecto erótico [Mulvey,
1975]) e o voyerismo (prazer em olhar
outra pessoa nua ou durante um acto sexual).
A escopofilia consiste numa das principais formas de prazer
do cinema: a partir da objectificação sexual de outra pessoa, feita a partir da
observação, é possível obter prazer visual, mas também sexual. O voyeurismo alia-se e colabora com este
tipo de prazer, pois quando no cinema, o espectador sente-se como que a
espreitar pelo buraco da fechadura a
intimidade dos personagens.
[Existem] dois aspectos
contraditórios das estruturas agradáveis do olhar na situação cinematográfica
convencional. O primeiro aspecto, escopofílico, nasce do prazer de usar outra
pessoa como objecto de estimulação sexual através do olhar. O segundo aspecto,
desenvolvido através do narcisismo e da constituição do ego, advém da
identificação com a imagem olhada. (Mulvey, 1975)
Será que elas
ficaram no carro porque estava frio? Não teriam ficado no carro e assistido à
cena se estivesse sol? É certo que ficaram no carro, mas houve ou não
influência do instinto escopofílico e da sensação de voyer?