domingo, 29 de dezembro de 2013

15 minutos de atraso

Há uns tempos combinei com umas amigas encontrarmo-nos para “por a conversa em dia”, porém surgiu um imprevisto e atrasei-me. Como estava frio, elas resolveram estacionar o carro perto do local e esperar lá dentro. Passados poucos minutos, outro carro estacionou no lugar à frente e elas repararam que era um casal que não se coibia de trocar caricias, mesmo sendo dia e estando estacionados num local relativamente movimentado de Lisboa. Enquanto eu não chegava, as minhas amigas continuaram a assistir ao espectáculo. Curiosas e apreensivas, agradadas e escandalizadas, voluntária e involuntariamente, continuaram a assistir à cena.
Obviamente, quando cheguei ao local, este episódio foi motivo de conversa. Contaram-me que o rapaz era um mulherengo e que a rapariga lhe satisfazia todas as vontades, que se calhar nem namoravam, que ela podia ser a amante...

Mas como é que elas podiam ter esta informação? Elas não conheciam as pessoas em questão até terem estacionado no lugar à frente. Porque é que o rapaz tinha o poder e não a rapariga?

Após estudar o artigo O Prazer Visual e o Cinema Narrativo (Mulvey, 1957), tentei associar os conceitos que lá surgem com este episódio.
O artigo pretende associar o fascínio pelo cinema e os padrões pré-existentes na sociedade, entre eles, a forma padronizada de representar e satisfazer o desejo de prazer, assente num papel activo masculino e num papel passivo feminino.
Desse ponto de vista, cinema molda a maneira como se obtém prazer através do olhar, a partir de um ponto de vista masculino e falocentrista, enquanto que a mulher tem um lugar central apenas como imagem, unicamente exibida, que funciona exposta ao olhar masculino e daí submissa ao homem. A desigualdade entre sexos manifesta-se claramente. Desta maneira, o olhar criado pelo cinema narrativo é um olhar com género masculino por defeito e a mulher nunca produz sentido, não significa nada em si mesma, é apenas um objecto de prazer e um suporte à acção (Mulvey, 1975).

Será que foi devido a esta influência que as minhas amigas tiveram tanta facilidade em categorizar o rapaz como poderoso e a rapariga como objecto sexual? Sendo raparigas, não deviam de considerar a outra rapariga também poderosa e o rapaz como objecto sexual?

Ainda no artigo, há dois conceitos com grande relevância: a escopofilia (prazer em olhar a outra pessoa enquanto objecto erótico [Mulvey, 1975]) e o voyerismo (prazer em olhar outra pessoa nua ou durante um acto sexual).
A escopofilia consiste numa das principais formas de prazer do cinema: a partir da objectificação sexual de outra pessoa, feita a partir da observação, é possível obter prazer visual, mas também sexual. O voyeurismo alia-se e colabora com este tipo de prazer, pois quando no cinema, o espectador sente-se como que a espreitar pelo buraco da fechadura a intimidade dos personagens.
[Existem] dois aspectos contraditórios das estruturas agradáveis do olhar na situação cinematográfica convencional. O primeiro aspecto, escopofílico, nasce do prazer de usar outra pessoa como objecto de estimulação sexual através do olhar. O segundo aspecto, desenvolvido através do narcisismo e da constituição do ego, advém da identificação com a imagem olhada. (Mulvey, 1975)

Será que elas ficaram no carro porque estava frio? Não teriam ficado no carro e assistido à cena se estivesse sol? É certo que ficaram no carro, mas houve ou não influência do instinto escopofílico e da sensação de voyer?